terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

A GRAÇA DA MÚSICA EM ANIMAÇÃO

Para a minha geração, bem como a de meu pai e a de meu filho, os seriados de animação da televisão (ou das matinés de cinema, no caso de meu pai) são responsáveis por uma parte importante das memórias musicais da infância. Para meu pai, era a música que acompanhava cada passo das loucas perseguições protagonizadas por Tom e Jerry, (quando comecei a estudar o assunto, vi que os antigos cartoons da Metro, Disney e Warner são verdadeiros modelos de composição musical para cinema, através de uma técnica que veio a ser conhecida como mickeymousing). A música destas séries misturava composições originais com trechos de canções populares e de musica erudita (que muitas vezes incluía o repertório de opera – talvez você se lembre do Pernalonga alisando a careca de Hortelino ao som da abertura d’O Barbeiro de Sevilha). Eu, além de apreciar o mesmo repertório cartunesco de meu pai (que a TV, felizmente, não parou de reprisar), adorava a música de abertura de alguns dos primeiros animes que chegaram ao Brasil: Sawamu e Speed Racer (ouvindo-as hoje, parece-me que estas são muito inferiores à música da época de ouro da Warner – apesar dos evidentes méritos de refrões grudentos como “go speed racer go” e “ele se chamava o demolidor”).

Quanto a meu filho, basta dizer que uma das nossas brincadeiras musicais favoritas consiste em ele reconhecer de onde vem um trecho melódico que eu cantarolo, e freqüentemente são trechos advindos de séries de animação - como a canção de abertura d’ “Os Backyardigans”, animação em 3D veiculada no Brasil pelo canal a cabo Discovery Kids. Esta série canadense, aliás, tem uma direção musical muito inteligente, que aproxima-se de gêneros como o teatro musical (como “Cats”) e conseqüentemente do musical de cinema (como “Cantando na chuva”): a cada episódio, os personagens interpretam um repertório de canções criadas especialmente, sempre dentro de um estilo ou movimento da música popular. Assim, temos episódios em que a música é composta exclusivamente por bossa nova, ou por reggae, ou por disco, ou rock independente, ou polca, e assim por diante. Além disso, a música é bem gravada e muito bem arranjada. Se por um lado realizar a música da série deve ser um tremendo trabalho de produção, o 3D em si não é complexo: os cenários são despojados e repetidos, raramente aparecem personagens novos (os Backyardigans quase sempre aparecem em amplos cenários vazios, como desertos) e os personagens são todos desenhados de maneira a simplificar o lip sync (com bicos, por exemplo). A série tem muitos méritos, mas os Backyardigans, pelo menos para o meu senso de humor, não são exatamente hilariantes musicalmente. Há, no seriado, relativamente poucas piadas musicais, apesar de a música, volto a dizer, soar muito bem e ser muito criativa.

Piadas musicais funcionam muito bem em outros casos de animação direcionada ao publico infantil, mas é claro que não podemos generalizar e imaginar que toda a animação para crianças deva ter músicas engraçadas ou sequer ser engraçada o tempo todo; não podemos esquecer do tom mais épico da animação japonesa e nem dos Grandes Momentos Trágicos da Animação, como as mortes de Mufasa e da mãe do Bambi e todos os episódios da versão em anime do Pinóquio, que, tenho certeza, contribuiu para traumatizar milhares de crianças.
De qualquer maneira, eu sempre me interessei pelo humor na música: eu sou fã de “palhaçadas musicais” como as protagonizadas por Frank Zappa, Devo e Mutantes, e talvez uma das minhas coisas preferidas de todos os tempos seja os Muppets em Mahna Mahna (se você não tem a menor idéia do que é isso, não perca em http://www.youtube.com/watch?v=gRRFfg2Guq4). Como tenho colaborado com espetáculos de teatro infantil, faz parte de meu trabalho encontrar um jeito de fazer graça com música. Sempre me pergunto se é possível sequer se falar de uma piada musical. E se piadas musicais são possíveis, como será que elas funcionam?

Uma pista pode vir do que já foi chamado por um musicólogo como funções primárias e secundárias da música. Peço perdão pelo uso de termos pomposos, mas veremos que a idéia é muito simples: trata-se simplesmente de tirar uma música do seu contexto original. É uma maneira comum de obter um resultado engraçado, mas obviamente a piada funciona melhor quando a platéia compreende a sobreposição de significados, ou em outras palavras, percebe a diferença entre o contexto original e o novo. A platéia simplesmente deve conhecer qual foi a função primária para captar a intenção cômica da utilização secundária (é fácil generalizar esse conceito e perceber que ele também atua na expressão de uma ironia ou do sarcasmo).

É o caso do recente “Monstros versus Alienígenas”, do estúdio Dreamworks, em sua utilização das célebres 5 notas criadas por John Williams para “Contatos imediatos do terceiro grau”, dirigido por Steven Spielberg. Pule o parágrafo abaixo se você não gosta de spoilers.

É um dos pontos altos do filme, pelo menos em termos de comicidade. Alienígenas estão invadindo a Terra. Um artefato gigantesco pousa em uma região erma dos Estados Unidos. O presidente do país, uma mistura de Ronaldo Esper com George Bush resolve tomar a dianteira da situação, e, operando um teclado Yamaha DX7, tenta comunicar-se com os visitantes através da música. Ele escolhe a melodia de “Contatos”, com resultado pífio. O silêncio da nave visitante prenuncia o pior. O presidente, sentindo que precisa levar sua performance a níveis mais ambiciosos, lembra-se de outro tema musical do cinema e, em meio a uma engraçadíssima performance de dança, toca o tema de “Tira da pesada” no teclado. Aí é que os aliens ficam descontrolados de verdade, e o ataque começa.
Este é um bom exemplo de piada musical que só funciona se conhecermos a função primária da música. Muitos dos que assistiram os três filmes sabem que as duas melodias tinham caráter completamente diferente em suas utilizações iniciais: misterioso, quase místico em “Contatos” e urbano e descolado em “Tira”.

Sabe-se que Carl Stalling, o compositor dos Looney Tunes da Warner fazia piadas através do uso intenso de canções populares dos anos 40, até porque a própria Warner era detentora de direitos de publicação de centenas de canções da época. Esse repertório dificilmente está presente na memória do espectador brasileiro da atualidade, e o resultado é que muitas das intenções cômicas de Stalling provavelmente se perdem. Certamente o mesmo vai acontecer com o espectador de “MvA” de 2069.

Mas há outro tipo de humor musical, e se você assistir o vídeo do YouTube recomendado acima, vai entender do que estou falando. Ali também há referências (a cada intervenção do monstrinho), mas você pode não reconhecer nenhuma delas e ainda assim dar risada com o vídeo. Nesse caso, somos tentados a afirmar que há algo intrinsecamente engraçado à música. Ao menos, deve haver algo puramente musical que colabora com um roteiro e personagens que por si sós já são muito engraçados. Para tentar explicar o humor de “Mahna mahna” talvez precisemos procurar uma compreensão mais universal da música, que conta não com o nosso conhecimento prévio desta ou daquela melodia, mas com o funcionamento próprio do tempo musical, suas típicas inflexões, desenvolvimentos e resoluções. Nesse ponto abrem-se questões muito complexas da significação musical, que eu deixo, por enquanto, para eruditos do assunto.

GUILHERME MAXIMIANO
, músico, consultor em gestão, é professor do curso de produção musical da Anhembi Morumbi. Administrador pela FEA (USP), especialista em música pelo IMT (SP), é mestre em música pela ECA (USP). Desde 1998 realiza programas de treinamento em empresas, e desde 2001 desenvolve trilhas sonoras para peças de teatro e propaganda. Ministra ainda oficinas de música para atores, educadores e estudantes.